terça-feira, 10 de junho de 2008

A Rosa e o Besouro

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Um homem descalço pisa o som das coisas, sem perceber encosta nos galhos espinhosos das palavras e cai abrupto por sobre as estantes de orações que flutuam pela atmosfera de cheiros de épocas imemoriais. Desacordado pela dor e inconstância do destino, que se perde no norte do pensamento, a certeza do tempo se altera, e não confiante na cega aflição desta dor, o homem percorre com a ponta dos dedos as prateleiras suspensas em sua volta. Escolhe uma oração: “a paixão é a poesia que não está no papel”. Logo que lê, abre um sorriso brando – que mostra não concordar com a concepção simplista do argumento, e suspira aliviado: “ – a arte é o roteiro da vida que se espera do artista”. Neste inescrupuloso momento, o céu se abre em confins de fábulas, desce uma estrela duma constelação improvável e o sonho do homem se desfaz como as lisérgicas nuvens vespertinas. O homem, solitário, não comenta com seu futuro a ausência das pétalas, embora a rosa permaneça próxima e constante. A flauta que descansava sobre o criado-mudo, ao lado da cama, despedaça a sonolência do jardim. O homem, tocado pela flauta, desperta a rosa. A rosa, despertada pelo homem, lança suas pétalas. O perfume, lançado pelas pétalas, transforma o homem em besouro. O besouro, que era homem, vai ao jardim, vive por dois meses, e viverá mais um. Depois morrerá, para que adube os canteiros e nasçam outras rosas, que sejam despertadas por outros homens, que outros homens sintam o perfume das pétalas e voem besouros, para que os besouros fertilizem outras rosas. Tudo isto pela beleza do jardim.





Postado em Vai te a porra por Iury Campelo.
Publicado na Revista Trimera Casa de Letras n° 0.

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