sexta-feira, 27 de junho de 2008

Dia de espera e de panquecas

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Era senhor de si e do tempo, punha o risco à prova, o corpo em tentativa e muito erro. As cicatrizes a escorrer aquele amor rejeitado. Já havia amado o tudo, restou além do eco de dor, a esperança da mão estendida e do sorriso a tudo apagar. Divertia-se em ser rude, o mais amargo que alguém seria. Jurou a si mesmo o desamor eterno. E pobres as tolas em seu caminho, alimentava-se de corações inscientes, anátema de amores.

Apesar do desprezo havia nobre donzela que se mostrava imune ao seu verbo venenoso. Cujo coração a ele pertencia, mas que nunca pôde estilhaçar. Olhava-o partir em ponteiro alto, a desafiar o equilíbrio e a lógica. O peito apertava. Aguardava na janela o ronco do motor, e ansiava pela voz áspera e o laudatório resmungo. E da noite que não sentiu a fumaça do cigarro na rua, uma lágrima mostrou o pior.

Os destroços da moto misturam-se aos tantos relógios do pequeno ambulante. E o franzino vendedor que oferecia tempo também poderia alienar sorte. Ele de tempo sem medida agora trazia ponteiro cravado na espinha a marcar-lhe a vida todos os minutos. O pequeno traço morou onde médico ou curandeiro pôde ousar o toque, privou-lhe o andar, mas lhe proveu a vida. Ele de espírito livre, agora tinha o corpo preso. E quando sua rabugice havia afastado a todos, e seu esperar resumiu-se a um telefonema uma vida atrasado, surgiu-lhe pequena dádiva de olhos cintilantes.

Cuidava-lhe com o esmero de lapidária, limpava-lhe o rosto e os lábios, enxugava-lhe as lágrimas. Punha-o a cama ou ao passeio na renitente cadeira rolante. Os olhos lhe brilhavam a cada bobagem e o sorriso lhe iluminava as sandices. Ele como rotina ressentia-se do tempo, do amor e do viver. Rangia os dentes aos transeuntes, amaldiçoava os andarilhos, e mais ainda os preguiçosos. Jurava ódio a todos os amores, derramava lágrimas e lamentos, às vezes esboçava tímido sorriso aos meneios de aprovação. E sempre com dura palavra escarrada desmantelava a pequena em esperança.

Dava-lhe o tempo, e era tão parca a troca, mas a ela bastava. Às vezes ganhava um aceno disfarçado, ou sorriso enviesado, e por duas vezes o coração cavalgou um tenro e inebriante obrigado. A mera presença lhe enchia o dia, e todo amor que ofertava, a fazia leve, e era assim todo seu, e nada precisava esperar. E todos esperavam algo: a mãe por um milagre; o pai o sucesso do tratamento. Ele que o ponteiro lhe devolvesse o tempo e aquele telefonema. Era a única a não esperar. Havia esperado vida inteira para caber em outro. Ansiava apenas o dia seguinte, para pergunta-lhe sobre sonhos. E desejava em prece que mesmo por culpa ou pena a retribuísse o sentimento oferecido.

Ria sozinha das bobagens e resmungos, encontrava carinho nos solavancos, e nos negados gestos. Magoava-se apenas de não ser alvo daqueles reclamos em despeito. Dormia em seu cheiro e acordava por lembrança. Preparou-lhe as panquecas preferidas, as que lhe rendia sempre um pequeno sorriso. Do quarto escapavam doridos soluços. Estupefata parou à porta, hirta. Ele de olhos marejados e rijo cenho, a recebera em pé. O ponteiro retrocedera, as pernas responderam: às esperas, ao milagre, aos remédios. Ela de imensa alegria e olhos submersos; de dura e profunda tristeza, disse em tom de perda e voz oscilante: – Agora tens teu tempo de volta.

Ele ponderou a vida, passado e futuros, no bater da pálpebra. Baixou a cabeça e bruscamente num grito de dor e certeza entalhou o ponteiro de volta à espinha. As pernas desistiram do prumo, o corpo entregou-se à cama. E oferecendo lágrima e riso disse: – Eu quero panquecas!






Postado em Retalhos sem tempo por Zorbba Igreja.
Publicado na Revista Trimera Casa de Letras n° 0.

terça-feira, 10 de junho de 2008

(In)comunicação

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Marcos Igreja
Publicado na Revista Trimera Casa de Letras n° 0.

O ponto de partida

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De riso e sonho construí minha casa. Pintei as paredes de azul-temperança, as portas e janelas de amarelo-vontade e o telhado de vermelho-suspiro. Em meu jardim imensos girassóis perseguidores de luz. Azaléias de veludo carmim e pequenos cacos de céu em miosótis. O muro coberto de loucura-de-criança para manter a insanidade do mundo distante de mim.

Era sempre Monet. Hoje sou Frida e Kandinsky. Onde não se vê era Munch. Agora Bouguereau e Tadema. Perdidamente apaixonada por um Caravaggio, ou quase ele. Ansiando em suspiros por ser a Flora de Botticelli.

Vou morrer de arte ou de saudade. Ou talvez seja tudo a mesma coisa. Mas a falta que tua mão me faz, só minha mão pode mensurar. Não há nó em mim que desate a ausência que me segura. É só a janela aberta. Só o vento cantando e a noite sorrindo. Quero tanto o que não conheço que nunca tenho tempo de conhecer o que me sobra. É um degrau a mais... e eu que odeio escadas, prefiro subir morros em estradas espirais.

Não abro mão dos meus sonhos... mas vivo com as mãos abertas em convite, e tenho sonhos indisciplinados e com asas fortes. Eles sempre vão. Sempre. Eu continuo de palmas estendidas chamando-os. Tão frívolos e arredios que só eu os quereria assim. Mas são meus. Meus. Tijolos da minha estrada pra lugar nenhum. Meus. E eu os levo. Carrego orgulhosa a bandeira dos que não lutam. Porque não fui feita disso. E nem todo o mérito vem das batalhas. Não nasci para os campos de guerra. Prefiro os de Van Gogh.

Contemplativa. Dessas de deixar a vida passar só para achar bonito. E a vida é tão simples que dá medo. Mas é tanto amor. Tanto. E vivo disso. De amor e de achar bonito. Ou talvez seja tudo a mesma coisa. É só essa vontade absurda de contar histórias que não deveria.





Aline Chaves
Publicado na Revista Trimera Casa de Letras n° 0.

Poeminha displicentemente jogado por aí

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Se esse amor
for coisa barata
faça um favor:
pega o chinelo
e mata.





Postado em Farinhada por André Gonçalves.
Publicado em Coisas de Amor Largadas na Noite por André Gonçalves.
Publicado na Revista Trimera Casa de Letras n° 0.

Beijosmeliga?

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Eu esperava ansiosamente por notícias, de quem ou sobre o que, até hoje eu não sei. Esperei por pedidos de desculpas, e por ligações sentimentalistas...Trim-trim: A telemar avisa... tu.tu.tu.

Eu esperava por uma visita amistosa e sem grandes pretensões, alguém que batesse na minha porta e dissesse: “Oi, passei aqui só pra te dar um abraço”.

Din-don: - Quem é? – Correioooooo

Nem tudo estava perdido, ainda existia a possibilidade de uma carta: Banco do Brasil, Conta telefônica...

Tudo bem, certamente o consolo chegará por e-mail... Caixa de entrada. Uma mensagem não lida: Clique aqui e aumente seu pênis. Largada e assistindo Ana Maria Braga, vi-me entregue a decadência doméstica. Porém, eis que “Loosing my religion” do REM começa a tocar. É o meu celular! Começo uma “caça ao celular”. Achei! Estava debaixo do meu travesseiro. Alguém me mandara uma mensagem. Caixa de entrada. Uma mensagem não lida: Insira novos créditos. Totalmente jogada às traças, mergulhada no esquecimento alheio, resolvi sair de casa. Fui ao centro, debaixo de um sol escaldante. Talvez eu encontre alguém conhecido, que me diga o quanto sente minha falta. Então, eis que de repente, vejo alguém com os braços estendidos caminhando em minha direção. Um pequeno papel é lançado em minhas mãos: Irmã Janaína - Trago o amor da sua vida em 7 dias.





Postado em Nadificando por Raquel G.
Publicado na Revista Trimera Casa de Letras n° 0.
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Penso em deixar a vida
como uma flor na calçada é deixada.
Com lentidão na queda,
com desdém no gesto
e com amor na alma.




Postado em Alecrim e sufoco atmosférico por Laís Romero
Publicado na Revista Trimera Casa de Letras n° 0.

Hanna Barbera

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diz uma coisa,
só para que eu não erre:
nessa estória de nós dois
quem é o Tom?
quem é o Jerry?





Postado em Farinhada por André Gonçalves.
Publicado em Coisas de Amor Largadas na Noite por André Gonçalves.
Publicado na Revista Trimera Casa de Letras n° 0.

A Rosa e o Besouro

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Um homem descalço pisa o som das coisas, sem perceber encosta nos galhos espinhosos das palavras e cai abrupto por sobre as estantes de orações que flutuam pela atmosfera de cheiros de épocas imemoriais. Desacordado pela dor e inconstância do destino, que se perde no norte do pensamento, a certeza do tempo se altera, e não confiante na cega aflição desta dor, o homem percorre com a ponta dos dedos as prateleiras suspensas em sua volta. Escolhe uma oração: “a paixão é a poesia que não está no papel”. Logo que lê, abre um sorriso brando – que mostra não concordar com a concepção simplista do argumento, e suspira aliviado: “ – a arte é o roteiro da vida que se espera do artista”. Neste inescrupuloso momento, o céu se abre em confins de fábulas, desce uma estrela duma constelação improvável e o sonho do homem se desfaz como as lisérgicas nuvens vespertinas. O homem, solitário, não comenta com seu futuro a ausência das pétalas, embora a rosa permaneça próxima e constante. A flauta que descansava sobre o criado-mudo, ao lado da cama, despedaça a sonolência do jardim. O homem, tocado pela flauta, desperta a rosa. A rosa, despertada pelo homem, lança suas pétalas. O perfume, lançado pelas pétalas, transforma o homem em besouro. O besouro, que era homem, vai ao jardim, vive por dois meses, e viverá mais um. Depois morrerá, para que adube os canteiros e nasçam outras rosas, que sejam despertadas por outros homens, que outros homens sintam o perfume das pétalas e voem besouros, para que os besouros fertilizem outras rosas. Tudo isto pela beleza do jardim.





Postado em Vai te a porra por Iury Campelo.
Publicado na Revista Trimera Casa de Letras n° 0.
Estava tudo combinado
ele cozinhava
ela lavava os pratos
e assim seguiria sendo
não fosse a mania dele
de degas monet toulouse a vida inteira...





Postado em A desjanela dela por Arianne Pirajá.
Publicado na Revista Trimera Casa de Letras n° 0.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Boquete

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A esta altura
metade de mim
é tua cintura

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Postado em Vai te a porra por Iury Campelo